Este artigo é uma continuação do artigo anterior “Sou reformado, não puritano”.
Jonathan Silva de Araújo leu o meu artigo e reagiu, dizendo:
“Gostei muito do texto, mas gostaria de saber as diferencias teológicas fundamentais que existem entre os símbolos de Westminster e as três formas de unidade das Igrejas Reformadas; diferenças a respeito da predestinação, das Alianças, a respeito da igreja e a respeito do uso da lei, especialmente o quarto mandamento. Ficarei grato se o Senhor me responder”.
Esta solicitação ficou na minha “gaveta” por algumas semanas, porque estava viajando e não tive a oportunidade de reagir logo. As perguntas são boas e lógicas e merecem uma resposta. Mas não posso explicar tudo de uma vez, então considerem este artigo como o primeiro passo. Se Deus quiser outros artigos seguirão este.
Antes de falar sobre as diferenças teológicas entre a Confissão Belga (1560) e a Confissão de Westminster (1648) quero mais uma vez enfatizar a concordância entre as duas confissões. Abaixo colocarei o conteúdo das duas confissões lado a lado num quadro e logo se destaca em vermelho a concordância em vários assuntos, como: falando de Deus, das sagradas escrituras, da Trindade, da criação, da providência de Deus, da queda do homem, do pecado original etc. Da para ver que a confissão de Westminster foi feita em concordância com as confissões, as quais foram feitas anteriormente. Existe uma grande harmonia de pensamento por um lado entre Calvino, que fez a Confissão Gaulesa ou Francesa (1559), Guido de Brés, que adaptou a Confissão Gaulesa para as igrejas Belgas em 1560, os teólogos de Heidelberg, que fizeram o Catecismo de Heidelberg (1564) e os teólogos da Suíça que fizeram a Harmonia Confessionum (1581) e por outro lado os teólogos que fizeram a Confissão de Westminster.
Confissão Belga (1560) 1 - De Deus; 2 - Da Revelação; 3-7 Das Escrituras; 8-11 Da Trindade; 12 Da Criação; 13 Da Providência; 14 Da Queda do Homem; 15 Do Pecado original; 16 Da Predestinação; 17 Do Salvador; 18 Da Encarnação de JC 19 Das 2 naturezas de JC 20 Da Justiça de Deus; 21 Da Satisfação de JC; 22 Da Justificação pela fé; 23 Da nossa Justiça em JC; 24 Da nossa Santificação; 25 Do papel da lei; 26 Do nosso advogado JC; 27-29 Da Igreja; 30 Do governo da Igreja; 31 Dos oficiais da Igreja; 32 Da Disciplina da Igreja; 33 Dos Sacramentos; 34 Da Batismo; 35 Da Santa Ceia; 36 Do papel do Governo Civil; 37 Do Juízo Final
| Confissão Westminster (1648) 1 – Da Sagrada Escritura; 2 – De Deus e da Santíssima Trindade; 3 – Do eterno Decreto de Deus; 4 – Da Criação 5 – Da Providência 6 – Da Queda do Homem, do Pecado e de sua Punição; 7 – Do Pacto de Deus com o homem; 8 – De Cristo o Mediador; 9 – Do Livre Arbítrio; 10 – Da Vocação Eficaz; 11 – Da Justificação; 12 – Da Adoção; 13 – Da Santificação; 14 – Da Fé salvífica; 15 – Do Arrependimento para a vida; 16 – Das Boas Obras; 17 – Da Perseverança dos Santos; 18 – Da Certeza da Graça e da Salvação; 19 – Da Lei de Deus 20 – Da Liberdade Cristã e da Liberdade de Consciência; 21 – Do Culto religioso e do Dia de Repouso; 22 – Dos Juramentos legais e dos Votos; 23 – Do Magistrado Civil 24 – Do Matrimônio e do Divórcios; 25 – Da Igreja 26 – Da Comunhão dos Santos; 27 – Dos Sacramentos; 28 – Do Batismo; 29 – Da Ceia do Senhor; 30 – Das Censuras Eclesiásticas; 31 – Dos Sínodos e Concílios; 32 – Da Ressurreição
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Quem quer ter uma idéia melhor sobre a harmonia entre essas confissões, deve ler o livro de Joel R. Beeke & Sinclair B. Ferguson, Harmonia das Confissões Reformadas. (Ed. Cultura Cristã, 2006). Os autores colocaram o texto de várias confissões lado a lado, seguindo a ordem dos tópicos da Confissão Belga. Lendo esse livro, o leitor logo descobre que existe uma grande concordância.
Para mim é claro que a Confissão de Westminster é uma confissão de linha reformada, mas também não posso negar que existem diferenças. Chamo essas diferenças: diferenças inter-confessionais. Comparando todas as confissões (mais que quarenta!), que foram feitas na época da Reforma, desde os 67 artigos de Zwinglio até a Fórmula de Consenso (1675) feita na Suíça, uma pessoa descobrirá muitas diferenças. As igrejas protestantes (Luteranas, Zwinglianas, Calvinistas, Reformadas, Anglicanas etc.) passaram por um processo histórico em que elas tentaram definir com mais clareza a sua doutrina em confronto com a Igreja Católica de Roma e muitas vezes redefiniram as suas confissões em confronto com os anabatistas e outros sectários.
Por um lado podemos observar um progresso em pensamento e clareza doutrinaria, e por outro lado observamos também uma tendência escolástica para sistematizar detalhadamente toda doutrina. Vejo isso acontecer na Confissão de Westminster se vamos observar os tópicos que estão ligados com a lei de Deus, mas também se vamos observar o eterno decreto de Deus e a predestinação.
Os teólogos de Westminster colocaram esse assunto logo no início da Confissão de Westminster e dessa maneira ela se manifestou como supralapsariana. Calvino não pensava assim. Calvino era infralapsariano e essa posição ficou clara na Confissão Gaulesa e na Confissão Belga, que são produtos da teologia de João Calvino. Calvino era um teólogo que seguia a ordem das escrituras. Tanto as Institutas, como também os comentários dele mostram isso. O seu substituto, Beza era um teólogo sistemático. Foi Beza quem sistematizou a teologia reformada e colocou o eterno decreto de Deus e a predestinação logo no início como ponto de partida que dominava o resto da sua teologia.
Existe um diagrama de Theodore Beza, representando a seqüência lógica de redenção humana, mostrando os decretos eternos de Deus. (Veja Alister McGrath, A vida de João Calvino Ed. Cultura Cristã 2004, p. 245). Beza sistematizou a doutrina das escrituras e colocou o propósito eterno e imutável de Deus antes de tudo.
Calvino não pensava assim. A doutrina da predestinação nunca dominou a sua teologia. Não foi um tema específico nas primeiras edições das Institutas. Só na última edição das Institutas ele dedicou um capítulo à predestinação, mas tratou esse assunto bem cuidadosamente no final do seu livro.
O lugar onde Calvino tratou esse assunto em seu livro é importante, especialmente observando o contraste com Beza, o colega de Calvino, que preferia tratar esse assunto no início da sua teologia sistemática. Beza tratou a doutrina da predestinação em ligação com o Conselho de Deus. Eu li em algum lugar que Beza mandou uma carta a Calvino tocando nesse assunto, mas Calvino nunca deu uma resposta. Quer dizer: nunca foi encontrada uma resposta. Há pessoas que dizem que não houve uma resposta, pois Calvino manteve a sua opinião firme e não queria ofender Beza; outras pessoas acham que Calvino não reagiu, pois não queria amarrar ou fixar um só método de pensar.
Seja como for, Calvino tratou a predestinação no final de seu último livro das Institutas. A predestinação é um dos últimos capítulos. Antes disso Calvino falou sobre a obra do Espírito Santo; e nessa parte ele falou também da fé, da conversão e da justificação. E depois disso ele finalmente fala sobre a predestinação. Essa divisão de assuntos é uma divisão única. Quase nenhum teólogo reformado seguiu esse método. Não encontrei essa divisão em nenhum livro de teologia sistemática que foi escrito na história reformada posterior. Talvez isso explique por que muitos teólogos se perguntaram por que Calvino tratou esse assunto no final do seu livro. Há várias opiniões sobre isso. Quero mostrar isso.
Ronald Wallace (Calvino, Genebra e a Reforma. Cultura Cristã, 2003, p. 227)disse: “Temos de observar a mudança de lugar que Calvino faz em sua teologia da discussão sobre a Predestinação. Na primeira edição das Institutas, ela é brevemente discutida em conexão com a crença na Igreja. Nas edições seguintes, ela passa a ser discutida em conexão com a providência. Entretanto, na edição final, Calvino separou essas duas doutrinas uma da outra. Ele colocou sua discussão sobre a predestinação depois de ter discutido sua doutrina de Cristo e no clímax de sua discussão sobre “como recebemos a graça de Cristo”. Pode ser que, por meio dessa organização final, ele tenha desejado mostrar a doutrina numa posição levemente mais central e, assim, mostrar mais claramente seu valor prático para a vida. Além disso, fica evidente que ele mesmo não tinha nenhum desejo de discutir o decreto da eleição eterna antes de discutir completamente a pessoa e a obra de Cristo. A reflexão sobre a predestinação deve sempre ser subordinada à reflexão sobre Cristo” Então Wallace conclui cuidadosamente: “Pode ser que, por meio dessa organização final, ele tenha desejado mostrar a doutrina numa posição levemente mais central”
Há outros teólogos que acham que Calvino de propósito tratou esta doutrina no final para não deixar dominar a totalidade da sua teologia por uma doutrina complexa. Até Wallace observou isso. Ele diz o seguinte sobre isso (it. pag. 223): “Calvino disse, no início de sua discussão sobre a Predestinação, que ela se tornaria uma doutrina confusa e até mesmo perigosa, caso não fosse discutida com muito cuidado (Inst. 3:21.1.) Obviamente, na medida em que sua fé pessoal estava envolvida, ele teria ficado contente em dar à doutrina um lugar modesto mas básico entre seus outros postulados teológicos, desenvolvidos apenas na medida em que fossem úteis para edificar e fortalecer a Igreja”.
Essa é uma observação interessante e há mais uma observação que quero fazer. Pois, no Consensus Geneviensis, no qual os pastores de Genebra trataram essa doutrina, eles concluíram com Romanos 11.33, que fala sobre “a profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus. Quão insondáveis são os seus juízos e quão inescrutáveis, os seus caminhos”! Isso não se refere aos mistérios que foram revelados, mas isso se refere à luz inacessível (1 Tim. 6.16), na qual está escondido o Conselho de Deus, a quem adoramos. Nessa parte Calvino pergunta: por que me aproximar da ‘luz’ inacessível? Não para investigá-la curiosamente, mas para abraçá-la com respeito conforme as escrituras. Não devemos passar dos limites da revelação e investigar com curiosidade o que não foi revelado; ao invés disso devemos adorar e glorificar a sabedoria de Deus.
Pensando nisso, vejo um paralelo com o final das Institutas, pois antes de tratar a predestinação, Calvino fala sobre a adoração, sobre a oração. E quando ele começa a falar sobre a predestinação, ele enfatiza que o homem deve ser humilde quando quer conhecer ou investigar os mistérios de Deus. Calvino ensinou primeiramente a verdadeira atitude que devemos ter antes de investigar esse assunto. Devemos ser humildes e assim observar, adorar e glorificar a sabedoria de Deus, como Paulo também nos ensinou no final do capitulo 11. 33-36:
“Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus!
Quão insondáveis são os seus juízos e
quão inescrutáveis, os seus caminhos!
Quem, pois, conheceu a mente do Senhor?
Ou quem foi o seu Conselheiro?
Ou quem primeiro deu a ele para que lhe venha a ser restituído?
Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas.
A ele, pois, a glória eternamente! Amém!
(Em breve pretendo dar continuidade a segunda parte das respostas. AdG).